A escola é, entre muitas coisas, espaço
de construção de valores. Valores que sustentem qualquer esfera das relações
humanas com o princípio da alteridade. Talvez seja essa virtude, das muitas, aquela que uma vida só não dá conta alcançar plenamente, a mais
essencial para a convivência coletiva. E quando me refiro a “coletivo”
menciono as grandes esferas de aglomerações. Não apenas grupos que escolho conviver. Viver em um ambiente onde eu penso
e me preocupo com indivíduos que eu não conheço é uma premissa básica para se
viver humanisticamente em uma cidade, bairro, vila, quintal com parentes,
condomínio, vizinhança ou família. É pensar e se preocupar com qualquer tipo de
sofrimento que o outro possa ter ou vir a ter em consequência de uma atitude individual com finalidades individualistas.
Na sociedade brasileira guarda-se
heranças do mais vil, dramático e vergonhoso processo histórico da humanidade: a
escravização africana dos séculos XV ao XIX. Não que nenhum processo de
escravização, de outros povos, em outros tempos não tenham sido dramáticos. Mas
esse, um projeto inovador que durou séculos, com livre exercício de um super
lucrativo comércio de pessoas. Inovador pois a escravidão era posta a serviço do capitalismo mercantilista, um comércio para sustentar uma produção compulsória
e bilateral que objetivava produzir e fornecer o máximo possível no menor tempo e
custo que humanos poderiam oferecer.
Isto é, uma escravidão para atender uma demanda capitalista. Uma lógica
pura e simples de maior produção com menor custo. E o menor custo era a vida, a
força, a raça, a dignidade, a “nacionalidade”, a cultura, a fé, o sangue de
negros, que se esvaiam em sofrimento. Concomitante, em mesma medida de
existência e esforços ao sofrimento, a resistência. A resistência que está em
tudo que nos lembra África, raiz, ancestralidade. Ancestralidade talvez seja um
dos fenômenos mais presentes no consciente e inconsciente coletivo. Do ritmo, ao
cabelo. Da jinga à mandinga. Da guia ao tambor. Tudo exala ancestralidade em
suas essências e simbologias.
O negro no Brasil é muito mais que
escravidão. É a existência da África, ancestral maior de muitas nacionalidades
misturadas na senzala, quilombo, nos sertões, nas favelas. Escravo à mão de obra barata, sem acesso estrutural à
saúde, educação formal e propriedade. De uma África que apenas continuou
existindo e se processando, participando diretamente da história do Brasil, da
América, do Mundo.
Precisamos um trabalho de
valorização, muito mais do que de resgate. Pois coisas como religiões de matriz
afro, a contribuição de grandes intelectuais das humanidades e das ciências em
geral, as inúmeras heranças cotidianas como linguística, culinária, música, símbolos,
estética, entre outras coisas. Tudo isso existe. Não precisa ser resgatado.
Portanto, precisa ser valorizado. Desmistificado, “desdemonizado”. Mitos do
racismo científico e religioso[1]
que ainda permanecem no senso comum de mentalidades conservadoras.
Lutar, trabalhar e tentar viver eticamente
na luta contra o racismo exige um processo de metamorfose no que diz respeito
ao "olhar" sobre a questão. Me refiro ao fato de tentar entender à África com
o olhar do europeu. Ou melhor, o olhar brasileiro europeizado pelos séculos de eurocentrismo
em todas as instituições oficiais e lares eurodescentes. Por uma produção e importação audio-visual massiva e monopolista de visão conservadora, eurocêntrica e consumista. Analisar a África, o
negro, a religiosidade negra, a musicalidade, a estética, ou qualquer expressão
negra, em qualquer lugar do mundo, com o olhar do alienígena, de quem está fora
em todos os sentidos, digo sentidos como fé, identidade, reconhecimento, espiritualidade,
senso de humor, jinga, habilidades natas que vão além do corpo físico. Heranças
espirituais como muitos deles mesmo acreditam. Como acredita o candomblé e o
culto aos orixás. Digo, analisar tudo isso com o olhar eurocêntrico que temos
não alcança, não explica e não faz compreender de fato o significa ser negro no
Brasil. Uma história de um singular e doloroso equilíbrio entre sofrimento e
resistência. De um presente que ainda descrimina, exclui, limita, julga,
condena e pune pessoas apenas pelo fato de serem negras.
De políticas afirmativas federais ao
cotidiano docente nas escolas do país e do mundo, “África, afro descendência e
racismo” deveriam ser eixos prioritários
do ensino em todos os níveis. “Relações étnico-raciais” é um tema que deve ser
expandido em muitas áreas de conhecimento. Talvez assim pagaremos ao futuro, com muito mais dignidade a tão reclamada dívida histórica com a população afrobrasileira. E no caso específico das relações
humanas, o espaço escolar é dos mais importantes ambientes de desconstrução de estereótipos que se manifestam cotidianamente, sem a devida atenção e intervenção de docentes Atos e pensamentos reproduzindo-se ainda mais intensamente em outros ambientes cotidianos. No ambiente escolar persiste uma realidade dramática.
Muitos alunos são classificados negativamente por características negras,
sofrem com piadas, insultos diretos e sutis por ser negro ou negra. E isso, em
muitos casos é incorporado como normal, pelos próprios alunos e alunas, e
lamentavelmente também por nós. Nós professores, qualquer um formado até os
anos 2000, não teve nenhum tipo de menção sobre outra versão da história do
negro no Brasil além da escravidão. Talvez essa seja a primeira década de nossa
história em que há de fato um trabalho e interesse considerável por parte das
instituições e por parte de docentes, especialmente na área de humanas, existe
significativamente. As perspectivas que uma história da África e afro-brasileira
nos apresentam, tanto de construção quanto de divulgação e incorporação na
educação em todos os níveis, são muito novas. Mas existem e podem ser
aprendidas.
Capoeira, Escolas de Samba, Grupos de
Afoxé, rodas de samba, terreiros, quintais, garagens e barracões que louvam um
conjunto vasto e complexo, que vão de santos católicos, caciques e pajés,
cabras do sertão, boiadeiros, malandros, cafetinas de cabaré, ou até mesmo
parentes mortos. Dentre essas e outras expressões simbólicas e autenticas nos
quesitos “tradição, ancestralidade e preservação” está, indubitavelmente, o
Candomblé de Nação[2]. Um vasto campo simbólico, permeado e amarrado
por significados milenares. Um vasto horizonte de símbolos éticos, visão de mundo,
relação com o outro, com a natureza, com as hierarquias das sociedades
organizadas. Com um sensível e aguçado senso de nacionalismo extraterritorial[3].
Um nacionalismo vinculado à raiz, material e imaterial, e não necessariamente
espaço/temporal, embora também o seja.
Há também a herança linguística ioruba.
Com suas devidas adaptações e influências de outras línguas africanas, de
vocábulos indígenas e pronúncia singular de um português renovado pelos próprios
negros. As vestes, adereços, temperos, hábitos de saudação formal e informal, gestos,
palavras em tom de reza, de saudação, de gratidão. Tudo isso faz parte de modus
vivendi de um candomblecista. O contato sensível do mundo material e do mundo
imaterial é algo natural, constante e (in)consciente, e guarda em si a sua
principal singularidade: a consciência da ancestralidade.
O fato é que o Candomblé de Nação é
algo vigente, existente, dinâmico, presente em muitas dimensões “das sociedades”
brasileiras. Há pessoas candomblecistas em todas as profissões, em todas as escolas,
em todos os espaços coletivos de uma grande cidade brasileira. O candomblé em
si é um fenômeno essencialmente urbano fundado[4]
por mulheres ex-escravas ou nascidas livres. Unidas contraditoriamente em um
ambiente católico de irmandades.
O “Candomblé” enquanto fenômeno, tem
muito a ensinar sobre o povo, a cultura e a sociedade brasileira. Tem também
muito a ensinar sobre resistência, ancestralidade, virtudes, natureza,
preservação, espiritualidade, mitologia.
[1]
Ver: http://sersaberblog.blogspot.com.br/2011/03/as-bases-religiosas-e-cintificas-do.html
[2] Ver:
http://sersaberblog.blogspot.com.br/2010/11/o-que-e-candomble.html
[3]
Ver: http://sersaberblog.blogspot.com.br/2015/07/nacao-ketu-sintese-do-culto-ancestral.html?q=o+que+%C3%A9+candombl%C3%A9
[4] http://sersaberblog.blogspot.com.br/2013/07/origem-dos-candombles-de-nacao.html?q=o+que+%C3%A9+candombl%C3%A9
Acredito que quanto mais sabermos sobre nossa cultura(ela abrange muito mias que a religião),estaremos munidos a frente dos preconceitos camuflados e declarados.Obrigado por compartilhar! Abraços e mukuiu daqui.
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