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Infância: um paradigma social


Retomando tempos coloniais, no caso específico do Brasil, a história das crianças é trágica. Os primeiros relatos de crianças rejeitadas, mal tratadas ou mesmo exploradas no Brasil se remete aos filhos de portugueses com índias. Não eram índios e também não eram europeus. Então o que eram? Nada. Alguém sem identidade. Sem referência. Que, por sua vez, poderia ser convertido em servo ou escravo por sua condição natural. Depois, com a escravidão africana, crianças que não serviam para o trabalho eram expulsas das fazendas, deixadas à própria sorte. Com as leis abolicionistas, como a do Ventre Livre por exemplo. Essa questão piorou. Ao longo dos anos e da "evolução" social do país, o surgimento de famílias sem compromisso com a formação daqueles que são postos no mundo,  é cada vez mais intenso. E isso gera cada vez mais as condições propícias para o aumento do trabalho e da exploração infantil, em vários contextos.

Quando nos questionamos sobre tais condições, nos vem a mente as esferas responsáveis que são, Estado e Família, ou seja, público e privado. Uma das mudanças trazidas pela modernidade, no sentido estrito da palavra, é o tratamento da família e do Estado em relação à criança. Antes disso, crianças eram adultos em miniaturas, como foi questionado pela autora que escreve sobre História da Leitura. Criança não falava, não pensava, não sentia, e tinha a obrigação de ajudar no sustento da família, ou seja, trabalhar. Os iluministas e pensadores da modernidade começaram a mudar essa perspectiva no mundo ocidental. Filósofos, cientistas políticos e pedagogos começaram a dar tratamento diferente a questão da infância, que por sua vez passa a se estender à esfera privada. Tais tratamentos se resumiam em dar condições propícias para uma boa e saudável formação intelectual e biológica da criança, incluindo carinho, afeto, amor, respeito, não-violência.

Mas então nos perguntamos: por que ainda há exploração do trabalho infantil no mundo todo?

O fato é que, o tipo de administração do Modelo de Estado Burguês criado pela Revolução Francesa não teve a capacidade de oferecer condições para a efetivação prática do ideal elaborado. Nos países de Capitalismo atrasados e em desenvolvimento há, com muita intensidade, as desigualdades nos direitos civis, nas condições e oportunidades de trabalho, na garantia dos direito e deveres. Crianças nascem sem controle em famílias pobres, sem casa, sem emprego, viciadas em álcool e drogas. Famílias sem estruturas para oferecer condições propícias para uma boa e saudável formação intelectual e biológica da criança, incluindo carinho, afeto, amor, respeito, não violência.

E mais uma vez, vemos a complexidade nas relações entre público e privado. Saúde, educação, saneamento, trabalho, moradia, alimento, água potável, que teoricamente são direitos inalienáveis dos cidadãos (seres humanos) que devem ser garantidos pelo Estado, são, na verdade, produtos a serem vendidos pelo setor privado. Em outras palavras, se o cidadão não está satisfeito com aquilo que é oferecido pelo governo ele tem o direito de comprar em convênios médicos, escolas particulares, sistemas de segurança, hipermercados, universidades particulares, etc.. E, se o cidadão não tem condições econômicas de comprar ele se contenta com aquilo que o Estado oferece.

No caso específico do Brasil, as desigualdades sociais são diretamente proporcionais à questão étnica. O período escravista seguido da implantação da mão de obra livre foi articulado para excluir. E essa exclusão se inicia desde a infância. As escolas públicas brasileiras utilizavam, e ainda utilizam em menor grau, um “eficiente” critério de seleção. As turmas A eram compostas de alunos com notas altas, de famílias favorecidas, portanto, brancos. Na medida em que as letras se sucediam (A, B, C, D, E...) as notas diminuíam, a pobreza aumentava e a cor da pele escurecia.

Tais ações, que são sustentadas por uma visão fisiocrata, também explicada pelos pensadores do darwinismo social, não são regidas, na maioria das vezes, atitudes conscientes e articuladas. Mas sim por um tipo de racismo subconsciente. Presente no próprio ethos. Ethos que tem como fundamento a ideia de que os homens são postos em um mundo de oportunidades. E aqueles que se dedicam ao trabalho, ao desenvolvimento intelectual e obedecem às leis se sobressaem. Portanto, poderíamos então afirmar que, no caso do Brasil a população afrodescendentes, os pretos, são realmente preguiçosos e incapazes, pois não aproveitam as oportunidades igualitárias oferecidas por nossa democracia. E por serem inclinados à violência, estando mais próximos de um estado natural, animalesco, de acordo com o processo evolutivo, compõem também a maioria dentre a população carcerária brasileira.  

Foram esses os argumentos que sustentaram o processo escravista dos séculos XVI, XVII, XVIII; o processo civilizatório e neocolonial do século XIX; das iniciativas higienistas e segregacionistas no Brasil, África do Sul e EUA. E tais argumentos não claramente reproduzidos em discussões sociais, porém isso não significa que não estão presentes nas mentalidades e nas práticas sociais.


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Umas das grandes diferenças entre a relação com a infância entre o passado e presente, é a questão do direito. Antigamente as crianças não tinham direitos. Hoje elas têm, mas, na mesma proporção em que seus pais podem comprar.


Em relação ao estatuto da Criança e do Adolescente, temos uma grande contradição. Do ponto de vista dos direitos básicos comuns no cotidiano ele foi maravilhoso, mas em outras esferas ele atravancou e dificultou o bem estar coletivo, como acontece com a impunidade sobre adolescentes criminosos; vandalismo na escola; diferentes tratamentos com usuários de drogas e traficantes; e outros. O direito civil brasileiro ainda comete coisas como enjaular na Fundação Casa um adolescente viciado em Crack que roubou 10 reais, e absolver um adolescente de classe alta que espancou até a morte outro ser humano. E isto no faz retornar ao mesmo questionamento anterior: no Modelo de Estado Burguês Capitalista Democrático, "direitos" são produtos para ricos e migalhas para os pobres. E ricos e pobres quase (repito: QUASE) se traduzem em pretos e brancos. 


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